
No passado domingo, a polarizada Turquia, em estado de emergência desde 2016, foi palco de uma das mais significativas eleições da sua história republicana. Se, por um lado, após o endossamento de uma nova constituição de abril de 2017, o poder legislativo, executivo e judicial do país passa agora a concentrar-se numa única pessoa, por outro lado, devido ao facto do país ser um dos quatro membros do MINT (termo utilizado nas esferas económicas e financeiras para a referência aos setores de investimento do México, Indonésia, Nigéria e Turquia), uma observação mais cautelosa por parte dos Estados é exigida.
O debate em torno da reformulação do país, da repressão à oposição e do apoio da maioria dos meios de comunicação social turcos a Erdogan tem constituído a principal linha de análise à sua liderança, essencialmente uma análise que nasce a partir do estudo de estruturas políticas turcas. O que, porém, tem sido menosprezado desta análise é que os resultados das eleições de 24 de junho revelam um apoio contínuo de um povo a um líder e a um regime de um homem só.
Só este ano, a lira turca caiu aproximadamente 17% face ao dólar. Contudo, sendo que a economia turca continua a crescer – cerca de 7,4% de crescimento no primeiro trimestre de 2018 – a convocação de eleições antecipadas adiantou-se a eventuais desacelerações do crescimento económico e às influências que a queda da lira possa causar ao bolso dos eleitores. O facto das eleições terem sido marcadas para uma data tão iminente impossibilitou a organização das eleições gerais por parte da oposição e, como a inflação e as taxas de juro estão a aumentar progressivamente (sendo que a situação é um fator-chave em qualquer campanha política), a convocação antecipada de eleições ofereceu condições mais vantajosas para a vitória eleitoral do que se realizadas em 2019. Erdogan não quis arriscar, receando que a situação se agravasse. O risco compensou e Erdogan, mais uma vez, saiu vitorioso. Concomitantemente, o AKP saía vitorioso com 42,5% dos votos para as parlamentares, o que, a juntar aos votos atribuídos aos seus parceiros nacionalistas do MHP, lhes conferia uma confortável maioria de 384 assentos parlamentares.
O secular CHP, que havia conseguido o apoio eleitoral das províncias europeias, limitou-se a isso mesmo…ao apoio do coração secular da Turquia. E esta será, porventura, a principal linha diferenciadora que resulta de 24 de junho. Não pela oposição secularismo/islamismo lato sensu, mas pela forma como esta está iminentemente associada à própria polarização da sociedade e à fraca mobilização social arrojada pelos seculares. Erdogan conseguiu por em marcha uma estratégia que, com base na difusão de uma doutrina neo-otomana, alterou a constelação política da Turquia e reestruturar a identidade otomana e islâmica da sociedade, apresentando uma resposta de afirmação, de rompimento e de contrariedade ao processo de secularização. Esta mesma sociedade, onde 99,8% da população é islâmica, sentiu-se, pela mão de Erdogan, quase um século após a instauração da república, aceite, respeitada e, essencialmente, protagonista de um processo político dissimuladamente democrático.
Consciente que a ocidentalização empreendida no país fora sempre orientada para a modernização do centro (elemento intrínseco às estruturas do Estado) e que relegara a sociedade da periferia para um processo de subalternização social, económica e política, o processo de mobilização de Erdogan passou a operar a partir das próprias periferias. E foi esta mobilização, que simultaneamente concilia uma agenda neoliberal e islâmica, que permitiu a Erdogan construir um sistema de poder em torno da sociedade periférica que se sente excluída da agenda da oposição. E, ainda, foi esta mobilização que lhe permitiu dar um passo em frente na consolidação de uma Nova Turquia, enquanto projeto de capacitação política, social e económica da sociedade periférica.
Dizia Einstein que o seu ideal político era a democracia, para que o Homem fosse respeitado e para que nenhum indivíduo fosse venerado ou divinizado. A democracia dissimulada da Nova Turquia afronta-o, contraria-o e evidencia que o líder carismático, o “salvador”, pode bem emergir pelas mãos do povo se, para tal, o líder lhe estender a mão.
Por: Raquel dos Santos Fernandes*.
(* A redação do artigo de opinião é única e exclusivamente da responsabilidade da autora)