
A convidada do mês de Abril é Rita Pereira, natural de Barcelos e médica veterinária formada pelo Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, da Universidade do Porto. Tem especial interesse na área do comportamento animal, área na qual concluiu em 2020 o Curso Avançado Pós-Universitário dirigido pelo Centro para o Conhecimento Animal, em parceria com o Instituto Português de Psicologia e outras Ciências. Criou a Beehaviour, presente nas redes sociais, pela sua vontade de partilhar conhecimento e chegar a mais famílias, através de uma comunicação simples e de proximidade, porque acredita que o conhecimento pode, literalmente, salvar vidas. A trabalhar na área da saúde animal desde os 24 anos, a Rita lança uma questão polémica: será a humanização animal uma necessidade ou um perigo?
Segundo os dados do último estudo da Track.2Pets, mais de metade dos lares portugueses possuiu, pelo menos, um animal de estimação. O mesmo estudo também concluiu que eles são, cada vez mais, considerados elementos das nossas famílias, mas esta noção é diferente da humanização. A criação de vínculos emocionais fortes com os animais de companhia pode resultar sim numa maior consciencialização sobre tratar mais e melhor os nossos animais, garantindo-lhes conforto, bem-estar e cuidados de saúde. Então a humanização animal é benéfica e isto é um não assunto? Pelo contrário…
Quem nunca ouviu (ou disse) a frase “gosto mais do meu cão do que de muitas pessoas”? A presença de um animal de estimação nas nossas vidas é muitas vezes a lufada de ar fresco na correria do dia-a-dia e os benefícios desta convivência já estão mais do que descritos. Torna-se assim fácil (e quase automático) atribuirmos características humanas a um ser não humano, ou por outras palavras, a humanização (ou antropomorfização). A humanização animal é o ato de atribuir características humanas a animais e agir como se estivéssemos a lidar com um humano. A ciência já comprovou que cães e gatos, por exemplo, são seres sencientes, completamente capazes de sentir e expressar emoções, mas cães não são humanos, gatos não são humanos. A questão resume-se a este ponto.
Se por um lado a humanização animal pode promover a empatia e catapultar, por exemplo, a luta pelos direitos animais, por outro lado poderá pôr em risco o seu bem-estar, ao não identificar nem satisfazer as necessidades animais deles. Um cão, se tiver opção, poderá percorrer vários quilómetros por dia, a explorar, em busca de alimentos, a farejar, escavar, procurar parceiro/a, contactar com outros animais, etc. Os comportamentos naturais de um gato vão incluir longas horas de caça (muitas delas falhadas), marcação territorial, arranhar, comportamentos de grooming e allogrooming (lambedura de si próprio e a outros gatos, respectivamente), procurar parceiro/a, entre outros. Estas necessidades são difíceis de assegurar e podem entrar em conflito com a humanização.
Nas minhas consultas, vejo inúmeros sinais de humanização. “Dra, ele é como um filho para mim!” ou perguntarem carinhosamente “quem é o amor da mamã?”. Estas afirmações são obviamente demonstrações de carinho e de forma direta não irão trazer consequências para o animal. O problema está na ausência de equilíbrio e aqui sim, poderão existir consequências reais na saúde física e emocional dos nossos animais.
Estou sim a falar de todos os dias vestir-lhe um pijama para dormir, dar-lhe banhos quase diariamente impedindo que tenha o seu odor natural (que contém feromonas muito importantes para a sua comunicação), alimentá-lo com guloseimas feitas para humanos, passeá-lo apenas no colo ou dentro de um carrinho, não permitir que interaja com animais da mesma espécie durante os passeios, … Por mais carinhoso e bem intencionado que possa ser, é importante compreender que um cão, gato ou outro animal de estimação não é um humano em ponto pequeno e tem necessidades espécie-específicas que devem ser respeitadas.
Reações cutâneas, infeções respiratórias, otites, transtornos gastrointestinais, intoxicações alimentares, intoxicações por medicamentos para humanos, obesidade, problemas de locomoção e sociabilização, desenvolvimento de quadros de ansiedade e problemas relacionados com a separação são apenas o início da lista infindável de possíveis consequências da humanização animal. Existem várias formas de demonstrar amor que não colidem com as necessidades dos animais, nem desrespeitam a sua natureza. Cada caso é um caso e os extremismos, em regra geral, não são boa ideia.
Convido-vos a refletirem comigo com um exemplo real: numa consulta a um paciente que estava ao colo, pedi à tutora para colocar o seu cão no chão. Ela ficou muito preocupada e disse-me “Não… Ele não pode ir para o chão porque fica sujo!”. Sei que é uma pergunta provocatória, mas um cão que vive no colo poderá expressar o seu comportamento natural? Um cão que não anda no chão, não fareja, não explora novos ambientes, sai de casa apenas no colo ou dentro de uma mala e que não interage com outros cachorros, será feliz?